quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

BOA VIAGEM, SEU JAYME !

Jayme Moreira da Silva (foto : Irene Santos)
Sábios nagôs, senhores do tempo  e da memória  já ensinaram que nossa existência ocorre em dois espaços: aquele em que circulamos acordados,  e que em yorubá é chamado ÀIYÉ  e o outro que é o mundo dos encantados, o ÓRUN, que  circunda o nosso "mundo concreto". Nesse plano paralelo, em alguma fatia desse espaço/ tempo que nos envolve,  ainda existe vibrante, a Colônia Africana, superpondo-se transparente às ruas e avenidas do bairro Rio Branco em Porto Alegre.
É povoada por antigos moradores que circulam atarefados,   ansiosos pelo final da tarde, quando após o trabalho diário, podem se dedicar a preparar a próxima festa do Carnaval. Desde o último sábado, dia 25 de janeiro, existe mais um habitante vivendo nesse bairro.
O nosso querido griot JAYME MOREIRA DA SILVA mudou-se de vez para o Órun. 
Ele que costumava contar que "da Primavera às Cinzas, tudo era festa na Colônia Africana".

Vista da Colonia por volta de 1915

Seu Jayme devia ir de vez em quando visitar sua querida Colônia. Dava para perceber quando se conversava com ele... quando seu olhar se iluminava contando sobre a preparação das festas de verão, sobre os bailes no salão Modelo, sobre o carnaval de rua, sobre a Liga da Canela Preta, sobre os jogos no Campo do Pólo, sobre as matinês nos cinemas  Baltimore e Rio Branco Seu Jayme sempre acentuava que, ao contrário do que costumava alardear a imprensa da época, "a Colônia Africana era um território de gente trabalhadora, honesta, correta e que estudava".
Nascido em 1915, cumpriu sua missão de griot e agora voltou para casa
Ensinou cada um de  nós a não  abdicar de  protagonizar a nossa história. E que o bem maior a transmitir às novas gerações é a alegria e o orgulho pela nossa origem africana  e pela cultura desenvolvida e aperfeiçoada em terra brasileira.
Muito obrigada, Seu Jayme, por iluminar com tanta competência o  caminho da busca  às nossas origens! 
E bom Carnaval por aí, Seu Jayme!
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quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

BATE, ASSOPRA, BATE DE NOVO...


Vendedor de cestos. J.B.Debret
Jean Baptiste Debret , francês, pintor, professor, veio para o Brasil integrando a Missão Francesa de artistas importados por D.João VI em 1816.Romântico por formação, parece ter-se apaixonado pelo exotismo do povo habitante do Brasil.  
Disto resultou uma farta produção de registros do cotidiano dos negros que viviam principalmente no Rio de Janeiro. O artista  Debret chegou a elogiar as figuras de negros que desenhava pelo porte imperecível das esculturas gregas e egipcias . Mas contraditório, não se furtou a declarar achar que
 "negro é indolente, vegeta onde se encontra, compraz-se na sua nulidade e faz da preguiça sua ambição. [...]"
Em sua tese de mestrado(1) a professora Vanessa R Lambert de Souza explica: 

[...] a construção de um imaginário depreciativo concernente aos negros é bem antiga, não ocorrendo somente na iconografia. Os artistas trabalhavam uma determinada linguagem simbólica. Muitos desses  símbolos  estão  ligados  à  tradição, sendo  necessário  um  grande esforço para mudar aquilo que estaria rigidamente estabelecido.

Mulher com frutas. Acervo Museu Porto Alegre
Muito incensado por aqui, nos anos 1920/1930 era o cronista Achyles Porto Alegre. Escrevia sobre os costumes e os habitantes da cidade.  Em seu livro Prosa Esparsa   de 1925 pode-se ler sobre  a preta Camilla:  
"Ali, no degrao de cima, da escada  de pedra do quartel do 7º de Infantaria, postava-se a preta Camilla com seu taboleiro com pinhões, pipocas amendoim torrado e 'farinha de cachorro'.  [...] Antes das 8 horas da manhã, quem passasse por esse ponto a veria, attendendo a um ou outro collegial, na sua faina de todos os dias. E não eram só os meninos que iam para as escolas, como os soldados e toda a casta de gente que transitava pela escada. [...] Uma tarde a Camilla estava sentada no alto da escada às voltas com seus amendoins quando descia um cortejo fúnebre de uma moça que era um encanto e subia em direção à Matriz uma noiva para santificar na egreja o seu enlace. A Camilla pode-se afirmar uma preta boçal (?), disse sacudindo a cabeça: - Qual das duas será a mais feliz, a que vae para o cemitério ou a outra que segue em caminho da egreja?!... Quanta philosophia nessa phrase que escapou da boca dessa creatura ignorante!...
Como um século antes fizera Debret, o cronista porto alegrense na frase final, desqualifica qualquer intenção elogiosa que pudesse ter tido em relação à  preta Camilla. 
No século 19 os negros eram submetidos ao trabalho forçado e ao chicote.Quando eram soltos do tronco e para que pudessem voltar logo ao trabalho, tinham as feridas "tratadas" com sal grosso, o que as fazia arder por mais tempo . Hoje, século 21, quando não dá para usar o chicote e o sal, usam-se palavras para cultivar feridas nas "almas pretas".

Médica cubana recém chegada ao país da demagogia racial
Não é de admirar que a suposta jornalista Micheline Borges,do Rio Grande do Norte sinta-se à vontade para divulgar no Facebook sua opinião sobre a aparência dos participantes do programa "Mais Médicos": 
"Me perdoem se for preconceito, mas essas médicas cubanas tem uma Cara de empregada doméstica. Será que São médicas Mesmo? Afe que terrível. Médico, geralmente, tem postura, tem cara de médico, se impõe a partir da aparência...Coitada da nossa população. Será que eles entendem de dengue? Febre amarela? Deus proteja O nosso povo! (sic)"
Aqui, como no restante do país,o noticiário foi pródigo em divulgar as chibatadas na auto estima dos negros.

Qualquer semelhança...
- Já no início do ano, o Estado por meio do seu ministério da Cultura(MinC)  lançava polêmicos editais "destinados a tirar do limbo tantos projetos culturais produzidos por artistas negros e pardos".
Surpreendentemente mal redigidos, os editais levaram a uma impugnação anunciada, sob a alegação de ilegalidade da auto-declaração de raça (!?!) exigida dos proponentes de projetos.
A polêmica estendeu-se por meses a fio e, incentivada pela própria fundação que patrocinava os editais, aconteceu uma mobilização de artistas e produtores negros contra a medida "racista" do juiz maranhense. (3)
No segundo semestre, como costuma acontecer, a pizza ficou pronta: Funarte, MinC, Seppir, Fundação Palmares anunciaram  os projetos escolhidos para abiscoitar as valiosas premiações.
Curiosamente, entre os escolhidos, todos sócios de carteirinha do partido político que está mandando, havia  vários caras pálidas que, ou não apresentaram a auto-declaração ou, se apresentaram, mentiram
.
O deboche patrocinado pelo ministério era tanto que, aqui em Porto Alegre, uma das agraciadas com 200 mil reais, Michele Zgiet (...QUEM ???), se deu o luxo de alardear sua arrogância em pleno Brique da Redenção.Tipo assim: quem pode, pode!


No encerramento da Semana da Consciência Negra, 20 de novembro, foi realizada a 6ª Marcha Zumbi dos Palmares. Mereceu matéria no jornal mais lido da cidade, em destaque na editoria de Polícia (!!!). A "piada" não foi bem recebida na rede social e o jornal se desculpou pelo indesculpável:
Correção: A notícia sobre a Marcha Zumbi dos Palmares, produzida pela editoria de Geral, foi classificada erroneamente como um conteúdo de "Polícia" até a tarde desta quarta-feira. Embora tenhamos ajustado para ficar disponível exclusivamente na editoria de "Geral" e em suas capas e listas, a matéria pode aparecer com o topo de "Polícia" se o leitor abrir a URL disponibilizada antes da nossa correção (ZH 20.11.2012)
Barbaridade!! ser negro e/ou negra em Porto Alegre dá uma canseira!!!
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1) O vestuário do negro na fotografia e na pintura: Brasil, 1850-1890 - Vanessa Raquel Lambert de Souza -   UEP/SP - 2007
2)Prosa esparsa - Achyles Porto Alegre - Livraria do Globo - 1925
3) Para saber mais sobre os editais e a polêmica, acesse o Blog do Spirito Santo 
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