segunda-feira, 15 de julho de 2013

COM OS PÉS NA COZINHA

Dona Maurícia com seu filho mais jovem





Dona Mauricia Figueiredo, minha avó, era filha de libertos. Veio de Cachoeira do Sul para Porto Alegre no inicio do século 20, bem jovem, trazendo dois irmãos menores para terminar  de criar. Nesta cidade casou,  criou seus filhos junto com os irmãos pequenos, ficou viúva.
Durante toda a  vida sustentou a si e à família trabalhando em sua própria cozinha, fornecendo viandas  para uma clientela fiel.




Viandas eram as "quentinhas" da época. Feitas de lata no início do século e mais tarde de alumínio. Minha avó tinha até um serviço de entrega e busca que não deixava ficarem ociosos os meninos da familia.

As filhas de Dona Maurícia recordavam do grande fogão à lenha, do movimento da casa, dos panelões. Além da comida salgada, minha avó também fazia doces para fora, goiabada, rapaduras, de vez em quando um bolo de aniversário.

Dos filhos de Dona Maurícia, nenhum seguiu seus passos na profissão. Mas as filhas herdaram parte de sua habilidade nas artes da doçaria.


Em todo o país , particularmente aqui no sul, é muito comum uma pessoa branquinha, às vezes de olhos claros, chegar e dizer:
- Até  que eu até tenho um pé na cozinha...
A expressão pé na cozinha é um clássico do linguajar próprio do racismo cordial vigente por aqui. Significa que a pessoa, mesmo que não pareça, tem, lá beeeem longe no tempo, algum parente preto. . Explica-se porque : na época do Brasil Colônia as negras escravizadas é que pilotavam os fogões das cozinhas das sinhás
Ainda assim, a historiografia tradicional/tradicionalista  teima em esquecer de mencionar a influência dos negros na culinária gaúcha. 

Por exemplo, Athos Damasceno Ferreira, incensado cronista de costumes da Porto Alegre da primeira metade do século 20, afirma sem o menor constrangimento:
"...Tampouco dos pretos recebemos apreciável contribuição nessa esfera...É verdade que a preta punha a mão na massa, enfiava a colher de pau nas panelas fervilhantes de líquidos espessos e mexia infatigavelmente...Mas fazia tudo isso sob o olhar da sinhá..." (1)
Segundo as professoras Mª Claudete Bastos e Paula Pereira dos Santos,
"Apesar da condição inicial de escravizados, sem direitos e com sua cultura desprezada pelos brancos, os negros conseguiram se adaptar às condições de vida a que eram submetidos, formando e transformando pratos de diferentes culturas, graças a sua imaginação, através da combinação de diferentes ingredientes."(2)    

Mesa de casamento de Dona Helena. Acervo Helena Vieira
A tradição das doceiras veio se repetindo em cada uma de nossas familias negras. Mais do que os pés, nossas avós tinham almas , corações e mentes nas cozinhas, onde praticavam com orgulho e criatividade seus saberes culinários, heranças ancestrais. Quem tiver mais de 40 anos há de lembrar de uma avó, ou de uma tia que bem mostrava sua competência  fazendo surgir do nada uma mesa encantada, repleta de guloseimas, nos casamentos, nos aniversários das crianças, nas festas variadas.. 

Dona Helena Vieira, 87, lembra direitinho das mesas que fazia para suas crianças. Nada de leite condensado e nem chocolate. Os docinhos eram feitos à base de  coco e ovos.Tinha olho de sogra, cocadinha, quindim, Doces de batata bem sequinhos, merengues, paçoquinhas de amendoim, canudinhos de massa de pastel recheados com creme de baunilha.Os docinhos de coco levavam uma gema para ficarem amarelinhos.
Acervo particular

Para os adultos havia os doces de calda, de laranja azeda, de abóbora com coco, as tortas de pão-de-ló recheadas com creme de laranja. 

O alimento está presente em todos os momentos da vida das famílias negras, constitui sua história, tradição e identidade própria. A mesa de doces sempre foi o lugar de homenagem e de encontro. Como descreve a jornalista Vera Daisy Barcellos em um artigo inspiradíssimo:
"...E naquele espaço, além dos meus irmãos e irmãs, minha mãe acolhia os filhos dos outros, afilhados, sobrinhos, enfim uma multidão para os meus olhos infantis.Criei-me vendo aquela casa sempre cheia. "Onde comem cinco, come mais um", dizia, com sabedoria, minha mãe sempre disposta a partilhar sua mesa tosca coberta por uma toalha essencialmente branca, engomada e passada com pesado ferro à carvão. A humilde casa de minha mãe, que pela solidariedade ampliava suas paredes, tinha constante mesa farta. Adepta do ditado "de quem convida dá banquete", os aniversários eram regados à grande quantidade de comida.Cozinheira de mão cheia e doceira, a "velha" Eva se empenhava. "Pode sobrar, mas comida não pode faltar". Uma tirada, fruto do inconsciente coletivo, para superar os tempos de apenas sobras e pouca comida nas senzalas da casa grande. Dessa forma, múltiplos pratos se expandiam pela mesa e as sobremesas marcadamente divinas, do pudim de leite ao sagú com creme, complementado com o bolo com merengue e confeitos de prata. 
Bom tempo aquele de saborosas lembranças... " (3)
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3 comentários:

  1. Parabéns Irene, teu blog esta muito lindo. Fiquei muito feliz, e supressa e agradecida por ter colocado a foto de núpcias de meus pais.
    obrigada. Carlota Vieira

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  2. Muito bonita a matéria Irene ,sempre lembram acontecimentos de muitas outras das famílias daquela época.A fartura no que se oferecia nos aniversários,ou bastava receber amigos, que na época vinham desde de manhã.Eram sempre bem recebidos e com diversos pratos saborosos.Sobremesas como o manjar branco,com ameixa por cima. A boa comida sempre estava presente na mesa das famílias negras e com muita fartura. Neusa Pereira

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  3. Parabéns pelo belíssimo relato sobre a nossa cultura. Nas fotos colocadas trouxeram grandes lembranças da minha família.
    Francisco

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