quarta-feira, 17 de abril de 2013

APESAR DE VOCÊ...

Enviada por: Irene Santos, fotógrafa 

Até os anos 1970, como parte dos trotes aos recém chegados a todas as universidades, eram distribuídos chapéus ligeiramente ridículos que os "bixos" eram obrigados a usar durante algum tempo. Na foto,  calouros negros de diversas faculdades são homenageados pela Sociedade Floresta Aurora em 1967. Acervo V era Triumpho


Antes era assim: em toda família de pretos quando nascia o primeiro filho já começava a economia para o “canudo”. O canudo de papel, o diploma universitário era o sonho absoluto de todo o pai e toda a mãe, símbolo da ascensão de seus filhos ao patamar dos doutores. Porém cursar uma faculdade era tão caro que só ficava mesmo acessível aos filhos da classe média alta e, aqui no sul, de origem europeia  e sempre, bem clarinhos.

Aos negros, mulatos,pardos, mestiços de todas as cores, sobrava o limbo das impossibilidades: impossível concluir um curso médio porque o horário das aulas coincidia com o do trabalho (sem trabalho não tem comida em casa), impossível fazer um cursinho pré-vestibular, porque era muito caro - a  partir de um certo momento o cursinho passou a ser uma extensão obrigatória do curso médio (magistério, clássico, técnico, científico); impossível  enfrentar  horas e horas de provas duríssimas e passar no vestibular sem estar preparado. Ainda assim, alguns teimosos conseguiam à custa de muito sacrifício.

Um grande exemplo nos anos 1950 foi o do Dr Veridiano Farias,  primeiro médico negro formado pela UFRGS , em destaque na foto da turma de Medicina de 1951. 
"Veridiano Farias ficou conhecido entre os amigos como “O Teimoso”, por não desistir diante das dificuldades. As várias atividades de Veridiano Farias não impediriam que lutasse para realizar sua vocação na Medicina. Ao concluir seus estudos secundários prestou três ou quatro vezes o vestibular para medicina, não sendo aprovado."
Segundo seu neto e biógrafo, isso aconteceu porque não conseguia que realizassem  a "revisão de provas."(1). 
O recurso da revisão de  provas era o que restava aos negros esforçados quando lhes eram puxados os tapetes por algum inconformado julgador, irritado com sua pretendida ascensão sócio cultural. É bom lembrar que,  em geral, os recursos davam ganho de causa aos alunos pretos.
 Depois de formados, os negros continuavam a enfrentar o preconceito e a discriminação, sendo preteridos nos empregos e rejeitados até por possíveis clientes que não admitiam confiar a eles suas causas judiciais ou sua saúde.

Em 2003 o partido político recém chegado ao poder adotou uma medida de inclusão dos negros nas universidades ao instituir a "lei das cotas" ( lei federal 4.876/2003 ) . A boa intenção parou na ação incompleta: como já acontecera em com a Lei Aurea em 1888, uma medida aparentemente redentora de  seculares injustiças, parou no primeiro movimento. Toda lei para funcionar tem de ser implementada e o dicionário ensina que implementar é:
Introduzir algum processo ou protocolo em um determinado local, provendo recursos suficientes para que esse processo ou protocolo possa ocorrer de modo satisfatório.
No entanto no que se refere à lei das cotas nenhuma medida efetiva foi tomada em seu favor  ou de seus beneficiados. Não foram criados instrumentos para evitar a evasão dos cotistas, nenhuma medida assistencial, nenhum tipo de bolsa de estudo.  Não foi realizada qualquer campanha de comunicação que explicasse à população o significado da política inclusiva. Nada parecido com a divulgação do equivocado plebiscito sobre o desarmamento de 2005, regiamente patrocinado por quem tinha interesse em que tudo ficasse como estava, no caso as fabricantes de armas.
Para piorar, a classe dominante sentindo ameaçada a sua hegemonia na formação de doutores investiu pesado na desqualificação das políticas de reparação. Uma guerra exacerbada e unilateral  criava falsas questões e distorções conceituais:
- "As cotas seriam medidas racistas destinadas a criar um apartheid  que punia os  estudantes brancos ;

- ou os jovens brancos eram  inocentes , e não podiam ser responsabilizados pelas atrocidades cometidas por seus ancestrais  contra os negros escravizados;
- ou pior ainda, os cotistas por sua  incapacidade  de frequentar uma universidade  iriam causar o rebaixamento da produção acadêmica e da qualidade do ensino. Além do que, desperdiçariam as vagas, sumindo todos nos primeiros meses".
Todo esse discurso torpe subsidiava o racismo que rolava solto dentro das faculdades, praticado por professores e alunos brancos .
O dinheiro compra tudo e durante dez anos  os jornais, redes de tv, sites de internet, mantidos pelas classes dominantes, colocaram 24 horas por dia, seus corações e mentes a serviço da desconstrução e da desqualificação das cotas nas universidades.
O governo dava espaço para as polêmicas absurdas, não publicava (ou não realizava?) pesquisas de avaliação e só oficializou a política afirmativa em outubro de 2012.
Como não tem mais jeito de anular a lei,  agora começaram a aparecer os índices de pesquisas não oficiais que  revelam o que todos os pretos sempre souberam.(2) 
A tenacidade na busca de melhores condições de vida está no nosso DNA. E nadar contra a corrente é a nossa maneira de viver. É por isso que tantos cotistas negros se destacam pelo bom desempenho. E também não são tantos assim os que fogem da raia. Os jovens negros estão chegando ao mercado de trabalho bem preparados e conscientes de estarem realizando a utopia dos seus avós. A curto prazo vão mudando para melhor a autoestima de um povo inteiro, metade da população do país

.

Ainda assim, sempre existirão os racistas empedernidos que vão torcer o nariz e recusar o atendimento de um médico negro, mesmo se estiverem como nós, na fila do SUS. Não tem importância. Esses pacientes irão procurar um doutorzinho bem nascido, clarinho e que talvez tenha entrado e saído da universidade auxiliado pelo ponto eletrônico.
Ponto para nós: para nos atender, sobrarão os melhores!
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